As viagens de comboio dos subúrbios até à cidade nem são das piores deslocações pendulares que se podem fazer. Há sempre oportunidade de observar o passar das estações do ano, o rio que a linha férrea segue, a mudança da hora da luz, as pessoas, sonolentas de manhã e cansadas de tarde. Por vezes passavam semanas sem que houvesse nada que valesse a pena prestar atenção. Outras vezes sucediam-se dias com aspetos particulares e curiosos.
Naquele dia foi uma rapariga. Oh! Eu sei, há sempre tantas raparigas e é tão fácil um rapaz encantar-se nelas. Ela encantou-me, apesar de, racionalmente, não o dever ter feito. Havia outras raparigas naquele comboio, mais ao jeito que me costuma encantar. Como uma de olhos verdes e caracóis castanhos num nó que eu já tinha notado a olhar para mim. Ou outra, de lábios grossos e dentes grandes que já me sorrira.
Aquela, contudo, nem me vira sequer. Quando entrei no comboio ela ia com o olhar pregado num livro, deixando que dos seus olhos visse apenas a ténue linha negra das pestanas. Depois adormeceu com o livro no colo e o sol na pele branca. Nariz pequeno, sem personalidade, lábios finos, de rosa desidratado. Cabelo liso, negro, cortado pelo queixo. O corpo pequeno e franzino, as mãos minúsculas, de dedos muito finos e unhas não tratadas. Vestia tão simples que parecia sóbria. Sapatilhas, jeans, uma camisola azul. Agarrava uma mochila com os seus pertences. Parecia tão insignificante, como se o mundo não se importasse com ela, e isso não a incomodasse.
Peguei na minha mochila, que trazia coisas que não faziam falta nenhuma aos meus estudos: tabaco de enrolar, uma harmónica, uma revista de música, a carteira, um caderno para a eventualidade de um apontamento. Era mais certo vir cheia no regresso a casa, caso me dessem uns folhetos sobre ambientalismo, política ou ativismo social. Coisas com que ocupava o meu tempo, não sobrando grande espaço na agenda para o estudo. Ela deveria levar a mochila cheia de livros e fotocópias. Tinha aspeto de estudiosa.
Passei pelas duas raparigas atraentes antes de sair, que me sorriram, e só depois notei que ela já tinha saído. Mas no seu banco estava o livro, esquecido. Impulsivamente peguei-lhe, e só depois de sair é que o olhei. Se ela saíra naquela estação, talvez estudasse na mesma faculdade que eu.
Era um livro de histórias de amor, com a capa amarrotadíssima e as pontas das páginas machucadas.
Folheei o livro à procura dos dados do possuidor, que nos sítios habituais, quer nos improváveis, mas nada encontrei. Contudo, das suas páginas caiu um folheto, que observei atento. Tratava-se de uma conferência sobre autores portugueses contemporâneos, organizada e proferida por alunos de diferentes faculdades, estando assinalada uma palestra sobre o autor do livro. Possivelmente tinha-lhe interessado. As conferências eram na minha faculdade, dentro de poucos dias. Talvez aí a julgasse presente e tivesse possibilidade de lhe entregar o livro.
À noite, no sossego da minha cama, não consegui dormir. Eu, que o pouco que lia nem sequer incluía literatura relacionada com os meus estudos, folhei o livro, tentando descortinar através dele algum traço da personalidade da rapariga.
O livro era uma colectânea de histórias de amor, publicadas pelo seu autor numa revista, e agora melhoradas. Tentei recordar-me da rapariga, mas a memória parecia trair-me, não conseguindo vislumbrar nada nela que revelasse gostar de histórias de amor. O livro nada parecia ter a ver com ela, e contudo, vira-a a lê-lo.
O mistério continuou indecifrável até ao dia da conferência. Até lá dormi mal e levei os dias sobressaltado, olhando por cima dos ombros na esperança vã de a encontrar nos corredores da faculdade.
Inesperadamente, porque nunca apreciara a leitura, e menos ainda autores portugueses, tinha o livro lido, tendo-me provocado um qualquer sentimento romântico que me aumentara a vontade de a encontrar. Na hora da palestra entrei no auditório, onde já decorria. Percorri o público com o olhar, ansioso por a encontrar, sem sucesso, e só depois notei que ela era a conferencista.
Não sabia ainda o seu curso ou faculdade, mas em breve iria saber muito mais coisas sobre ela. Quando terminasse, entregar-lhe-ia o livro perdido. Agora entendi porque ela o lia. E entendi que o livro acabou por servir como a desculpa perfeita para lhe dirigir palavra.
© 2012
Belo texto!parabéns.
ResponderEliminarabraços e um lindo final de semana.
gostei muito, é um conto muito bonito.
ResponderEliminarObrigada pelas vossas palavras!
ResponderEliminarGostei muito deste texto.
ResponderEliminarÀs vezes lá me dá para o romantismo
ResponderEliminarParabéns pelo texto, Olinda. Está interessante, gostei muito. :)
ResponderEliminarBeijinhos
É lindo este conto...Poderia ter sido uma história veridica, ou pelo menos uma história que todos nós sonhamos um dia vir a viver.Parabéns pelo conto ;)
ResponderEliminarBeijos
Muitos parabens. Gostei imenso da fluidez da escrita.
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