Assuntos de Escrita - Entrevista a Sónia Duarte


Assuntos de Escrita é uma rúbrica deste blog que conta com a colaboração de outro blogger para nos falar de um assunto relacionado com a escrita. Este mês foi convidada Sónia Duarte, co-autora na Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa. Fez parte da equipa do extinto DNJovem, suplemento do Diário de Notícias.
 
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Entrevista a Sónia Duarte por Olinda P. Gil
 
Para iniciares, podes fazer uma pequena introdução sobre o teu percurso no DN Jovem?



Tive dois percursos no DN Jovem: como colaboradora e como editora. Um veio extinguir o outro. Como colaboradora, descobri-o com a edição de 9 de Setembro de 1993 (julgava que tinha sido mais tarde, mas fui confirmar ao meu velho repositório em papel). Ia em viagem, fui tomar o pequeno-almoço a um café de estrada ocasional, e lá estava o suplemento de terça-feira enfiado no meio do DN. Lembro-me que comecei por enviar banda desenhada, recebendo comentário no “Isto é Contigo”. Durante dois anos não enviei mais nada, até porque não comprava habitualmente jornais. A 19 de Setembro de 1995, fiz segunda tentativa com um guache e, dessa vez, ganho prémio e a assinatura do jornal das terças-feiras. Inicialmente, enviava mais ilustrações do que textos, embora pouca gente, hoje em dia, me associe às artes plásticas. Passado pouco tempo de começar a publicar lá, o meu breve idílio foi transtornado, pois o formato do DNJ como suplemento em papel acabou (21 de Maio de 1996). Num dia em que vou entregar/levantar originais à Avenida da Liberdade, venho a conhecer a Teresa Sebastião (a pessoa responsável pela imagem online do DNJ) e o Manuel Diasque, com o seu afável optimismo, me pediu para continuar a enviar trabalhos e não ir atrás da maré dos avessos à Net. Apesar de, ainda hoje, muitos diabolizarem a nova tecnologia como principal causa da morte do DNJ, a verdade é que, como já disse noutros contextos – e a jornalista Helena Freitas publicou uma investigação bastante completa sobre o assunto - a Internet não foi mais do que um bode expiatório. É que a transição do papel para o digital não foi apenas uma actualização tecnológica, o que certamente teria sido benéfico, mas veio acompanhada de um desinvestimento progressivo e um golpe institucional no projecto: a equipa a tempo inteiro foi trocada por colaboradores a tempo parcial, o fundador e coordenador-mor foi afastado (o Manel passou para outro departamento do jornal), os recursos de Informática, Design e Marketing foram reduzidos ao mínimo, e a Direcção do jornal meteu, a partir desse momento, o DNJ "na prateleira". O Manel procurou preencher os novos lugares afectos ao DNJ com a "prata da casa", ou seja, com os colaboradores mais habituais do suplemento. Quando me junto à equipa editorial do DNJ em Fevereiro de 2001 (quase cinco anos após a migração para a Net), entro na qualidade de substituta do José Luís Peixoto, que fora convidado antes de mim, estivera lá umas semanas e depois recusara a posição. Reparti tarefas com a colega mais antiga na função, a Sandra Augusto França. O DNJ era um part-time a que sempre fomos dedicadas, apesar de todas as contrariedades e da estagnação a que foi votado. Oficialmente, não tínhamos autonomia para avançar com melhorias informáticas ou parcerias de Marketing, que competiam a outros departamentos, embora insistentemente os contactássemos com propostas, os nossos pedidos eram colocados de parte. As duas componentes, papel e online, coxeavam, e nós éramos as primeiras a ter noção disso, mas, apesar de tudo, reconhecíamos o valor de estar ali a fazer um serviço público que mais nenhum jornal fazia. No papel, a redução do espaço disponível foi sempre crescente: em 2001, admitia um editorial; em 2002, já só cabia uma chamada de atenção para a lista dos publicados; a determinada altura, houve um restyling do DN e a globalidade das páginas do jornal foi encurtada, passámos a dispor de ainda menos caracteres e acabávamos por preferir destacar as melhores ilustrações (porque, de positivo, a mudança de design trouxera a hipótese de publicar a cores); quando transitámos para o suplemento 6ª, novo estreitamento da área de conteúdos, com a agravante de, por vezes, termos de a dividir com um anúncio a meia página, ou, pior ainda, desaparecermos em favor de uma publicidade a página inteira. Quanto à componente online, o design nunca foi renovado, houve um esforço para adicionar novas secções de conteúdos (por exemplo, o Jota Mais), mas não se acrescentaram novas funcionalidades interactivas e de multimédia, que já eram correntes na blogosfera. Outro factor que contribuiu bastante para perder ou não ganhar mais colaboradores foram as sucessivas mudanças do dia de saída do DNJ, nem sempre devidamente anunciadas no jornal diário, o qual era, para muitos, a primeira ou a única forma de contacto com o projecto. O Manel, que constituía uma via directa de comunicação com as chefias, reformou-se pouco depois (em 2003). O DNJ resiste no período subsequente graças ao trabalho conjunto de quatro pessoas: eu e a Sandra, na selecção dos textos, e Fernando Ribeiro e João Galante, na selecção das ilustrações. Sem redefinição de estratégias e com uma avaliação inadequada, o DNJ manteve-se naquela situação indefinida de já não ser um suplemento (perdera as oito páginas e passara a “secção” de uma página), e também não ser um artigo de jornal diário (saía semanalmente). Os nossos colaboradores de então, desconhecendo a "idade do ouro" do suplemento, davam-se por contentes de ainda prevalecer aquele meio de comunicação de massas que dava alguma atenção a jovens autores. Houve episódios bizarros: quando o DNJ ainda saía regularmente, um colega de Redacção (António Valdemar), que nos via lá a trabalhar, escreveu um artigo falando da extinção do DNJ em 1996 (o ano da transição), quando ele durou, pelo menos, mais uma década. Alienação do redactor ou da própria Direcção do jornal? De qualquer modo, nem sequer poderíamos culpar uma Direcção específica, uma vez que passámos por várias, numa cadência bastante rápida, desde os tempos do já falecido Mário Bettencourt Resendes até aos dirigentes sob a alçada de Joaquim Oliveira. Foi uma época conturbada para o próprio DN, entre fusões, vendas e aquisições empresariais, com muita instabilidade hierárquica, com jornalistas, armários e computadores (incluindo um com o nosso Arquivo geral) a desaparecerem de um dia para o outro (e quase se eclipsou o emblemático edifício, quando se falou em mudar o DN para Moscavide). Por fim, incluíram-nos no interior de outro suplemento (o 6ª). Uma “espécie de suplemento“ enfiada dentro de outro suplemento? Eu e a Sandra pressentimos que vinha aí a machadada final. Recordo que, na altura, a Helena Freitas estava a principiar a sua tese de Mestrado sobre o DN Jovem e eu apressei-a a vir recolher informação antes que a máquina parasse para sempre. Passado algum tempo, adeus DNJ. É claro que não se deve ler esse fim isolado da evolução do próprio DN (que, consta, foi recentemente vendido a angolanos), da imprensa em geral e da conjuntura do país. Esse foi um dos anos fatídicos da crise, com milhares de empresas portuguesas a abrir falência. Ironia do destino: o DNJ atingiu a maioridade e, aos quase vinte e quatro anos, aposentou-se. Acompanhei a sua história - primeiro como colaboradora e depois como editora - durante a última metade da sua existência.

O vazio deixado pelo DN Jovem foi de algum modo preenchido?
Existe actualmente, em Portugal, algum jornal diário de renome - a marca DN tem quase 150 anos na praça e uma notoriedade assim não se cria de um dia para o outro - que dedique oito páginas às obras meritórias de escritores e ilustradores estreantes? Há a Ler 15/25, que cobre mais ou menos a faixa etária do extinto DNJ, mas tem uma abrangência distinta, sendo uma revista especializada... Se me perguntas se o vazio deixado pelo DNJ na minha vida foi preenchido, digo-te que esse vazio nunca se chegou a formar. Continuo a falar com toda a equipa tal como eu a conheci (o Manel, a Sandra, o Fernando, o João) e com vários outros colaboradores que ficaram como amizades para a vida. Partilhamos referências por e-mail, vamos às festas, exposições, espectáculos, lançamentos e sites uns dos outros, encontramo-nos num ou noutro evento cultural, acompanhamo-nos mutuamente... Sinto que o principal do DNJ não morreu - só se despiu da sua forma organizacional - não morreu, porque não é facilmente perecível: é feito dos afectos das muitas pessoas ainda vivas que por lá passaram e, quando elas morrerem, ficam as obras, muitas das quais referem a sua estreia no DNJ. Há uma página especial, que elaborei por ocasião do vigésimo aniversário do DN Jovem (24 de Maio de 2003), que mostra bem a extensão e a diversidade de talentos desta rede, e não couberam lá todos os nomes. No presente, ainda se organizam jantares para nos revermos, por exemplo, sábado passado, na Homenagem a Manuel Dias, estiveram representadas, do Sul de Portugal até ao Minho, gerações DNJ com vinte e quatro anos de diferença (do veterano Luís Graça à benjamim Olinda Gil).
 
 Existem hoje em dia várias revistas literárias em formato digital. Vêm de algum modo fazer as vezes do DN Jovem digital, ou na altura essa alternativa ainda era mais dinâmica? (Desculpa a minha ignorância, mas o facto de viver longe das grandes cidades afecta-me o conhecimento sobre isso).
A Internet coloca as grandes cidades e as aldeias no mesmo plano, o Primeiro e o Terceiro Mundo têm acesso à mesma informação (excepto no caso de bloqueios nacionais e sites de conteúdos pagos). É isso a Aldeia Global. Provavelmente, até conhecerás mais revistas digitais do que eu. Mas, como sugeri anteriormente, a mais-valia do DNJ era a notoriedade da marca, a garantia de seriedade, a visibilidade ante um público generalista de todas as idades. Podia ser o avô a comprar o jornal para ler os contos do neto, mas também um colega de trabalho a declarar “Li um texto teu no DN”. E imagine-se o que era miúdos com doze anos já com obras publicadas num jornal diário, conhecido de toda a gente, para incluir no portfólio... Actualmente, é bom haverem revistas digitais que façam pelos criadores emergentes o que os meios mais generalistas deixaram de fazer. Há projectos interessantes com linhas editoriais distintas: A Sul de Nenhum Norte, 365, etc. Estas poderão ou não ser mais dinâmicas, conforme os recursos de cada uma, e dependendo de as compararmos com o DNJ da 1ª fase (que promoveu viagens, feiras, encontros desportivos, recitais, exposições, antologias, etc.) ou o da 2ª fase...
Estiveste também ligada ao Na-Cama.Com, o primeiro blog colectivo em Portugal. Queres falar-nos dessa experiência e do que a distinguia em relação ao DNJ?
Eram projectos diferentes: um mais institucional, outro mais alternativo. Mas, tanto um como outro, representavam um excelente móbil para escrever e fico grata por ambas as oportunidades. O Na-Cama.Comsurgiu, salvo erro, no início do ano 2000, fundada por dois jovens do Instituto Superior Técnico. Em Setembro desse ano comecei a trabalhar numa empresa de telecomunicações rodeada de informáticos, entre os quais um dos fundadores desse blog, o Bruno Tiago Rodrigues, e outro engenheiro que me convidou a participar em 2001, o Rui Carmo. Adoptei um pseudónimo para esse efeito: chamava-me Amélia Postigo e algumas pessoas que me conheceram sob esse nome, mesmo depois de saberem o verdadeiro, continuaram a usá-lo, por força do hábito. Outro momento importante foi quando o designer Filipe Carvalho entrou em 2002 e renovou a imagem das várias “camas” e acho que fez um óptimo trabalho com a minha (uma cadeira em forma de livro aberto). Acabo por trazer para lá alguns colaboradores que conhecera através do DNJ: o Miguel Marques, o Rodrigo Francisco, tu, etc. Como, na altura, haviam poucos blogs portugueses online (a Internet chegara há pouco tempo a Portugal), o Na-Cama.Com reunia um número significativo de visitas e leitores fiéis, tendo sido mencionado pelo seu pioneirismo nos jornais Expresso (Nov. 2001), Público (Jul. 2002) e DN (Fev. 2003). Possuiu inclusive um carácter internacional, pois chegou a contar com a participação de Viviane Menezes, a primeira blogger do Brasil. Ainda se chegou a avançar com uma antologia de textos, mas a editora apoiante recuou por problemas financeiros. Tenho-a guardada algures.
Nos dias de hoje, qual consideras o melhor modo de quem escreve dar a mostrar a sua palavra?
Como não considero que a “palavra” pertença exclusivamente ao domínio da literatura, é fazer como as Pussy Riot ou como Lars Von Trier que, cada vez que lança um novo filme, cria um novo escândalo - não sei se ele faz isto de forma sistemática, sei que faz o que tem de fazer, e olha que conseguir ser expulso de Cannes com aquela idade é um feito! Por regra, a normalização é tanta que quem quiser romper com o provincianismo do estrelato (Fernando Pessoa queixou-se do “provincianismo português” e deu como exemplo Eça de Queiroz) tem de fazer a sua performance anti-establishment, um pouco como Sócrates a espicaçar os Atenienses para que não adormeçam ou a vanguarda a provocar a acomodada burguesia. É uma lei natural: a luz circula melhor no vácuo, nos intervalos da matéria. É preciso abrir esses intervalos. É preciso pessoas que abram intervalos, fendas, disrupções, nas escravidões instituídas, para que passe um pouco de luz nova. Enquanto houver palmadinhas nas costas e piscadelas de olho às convenções e aos chefes-de-escola vigentes, é mais do mesmo, é, por definição, a ideia feita, o cliché, o pré-conceito (pré-concebido). Claro que não chega uma pessoa pôr-se em bicos de pés para ter o seu tempo de antena - basta ver a felicidade dos que vão àquele programa antes do telejornal - é preciso depois ter algo para apresentar que faça realmente a diferença. Hoje em dia, há muito disso em todas as áreas - na arte, na literatura, na culinária, na música... - gente a pelar-se pelos seus cinco minutos de fama warholianos. Esta inflação do familiarismo comunitário - somos todos uma grande família -, se não tiver um objectivo mais construtivo do que formar consenso e dar espectáculo (para satisfação das empresas que retiram lucros elevadíssimos das tendências em massa), é uma indústria da redundância que forma pessoas e obras como produtos em linha de série numa prateleira de supermercado, todos paráfrases do mesmo... Faz-me lembrar aqueles dias em que passo pelo Facebook e vejo milhares de pessoas a publicar e comentar as mesmas notícias, a repetir aquilo que ouviram das agências da comunicação (que, por sua vez, se copiam umas às outras), e aí penso que se conseguiu inventar uma forma de comandar as mentes à distância... e é bem real. O agenda-settingé uma forma de programação das mentes humanas: hoje, a massa vai falar disto; amanhã, inoculamos-lhe aquilo pelos olhos e ouvidos adentro... Passa-se a ideia de que isto é “estar actualizado”, mas é propaganda mediática (dos “quarto” e “quinto” poderes). Às tantas, está-se é muito mais alienado, pré-ocupados com o cataclismo que aconteceu a milhares de quilómetros de distância, e, enquanto isso, nem somos capazes de reparar no que está a dois passos, por exemplo, que deitámos azeite a mais no prato do nosso filho ou que dissemos algo infeliz que magoou a nossa companhia ou que o nosso corpo nos pede para ir dormir e nós ali estamos a forçar a vigília frente ao écran. São fascismos também.
Os jovens estão em pé de igualdade em relação às pessoas mais velhas?
Quanto à possibilidade de se divulgarem? Sim e não. Por um lado, um jovem prodígio atrai mais as atenções. Por outro, um velho anda cá há mais tempo, tem mais contactos, mais experiência em matéria de relações pessoais. As duas faixas etárias têm as suas mais-valias, digamos assim. Em criança, aprende-se com muito mais facilidade. As crianças têm uma capacidade plástica incrível, maior elasticidade corporal e mental, são mais flexíveis do que os adultos, adaptam-se melhor a qualquer material, recurso, instrumento. Como ainda estão a construir hábitos e vícios, apropriam-se das coisas com maneiras novas. Envelhecer implica uma certa rigidificação psicossomática: não são só as articulações que ficam mais presas, é também a memória, vamos ficando mais lentos, duros... Eu diria que as crianças são superiores na improvisação, mas os mais velhos superam-nas na capacidade de integrar e elaborar pensamentos complexos. Por outro lado, as crianças estão completamente subjugadas aos mais velhos. Nascem prisioneiras dos sistemas dos seus pais e dos seus educadores. Têm de enfrentar e rebelar-se contra muitas proibições, censuras, barricadas, tapumes: não podes fazer isto, não deves dizer aquilo, etc. De certo modo, vivemos num mundo ao contrário: quando se está no auge da nossa inventividade é quando mais somos impedidos de fazer seja o que for (as leis, como sabemos, premeiam a maioridade). Ainda bem que nasci num mundo em que ainda não havia telemóveis nem GPS... Os miúdos são hoje muito mais controlados pelos dispositivos electrónicos (têm de ser mais criativos para os sabotar) do que eram no meu tempo de escola - mas, como a sua memória não conheceu essa época, aceitam-no como algo normal. Ser velho tem, por seu lado, essa vantagem na negociação das liberdades: já vimos muita coisa, temos maior poder de argumentação... De evitar, são aqueles jovens muito piores que velhos, “empenhados em moralizar toda a gente”, como replicou Álvaro de Campos aos estudantes universitários de Lisboa. Saem por aí de “lápis azul” em riste - um perigo!
Achas que, na literatura, é-se velho aos trinta? Sempre tive ideia que, na literatura, era-se jovem até mais tarde. Por exemplo, José Luís Peixoto e Valter Hugo Mãe, são considerados jovens escritores.
Há uma tendência legal e socio-económica para a infantilização da pessoa humana: é-se maior e independente cada vez mais tarde. Daí, todo o ressurgimento do kitsch, a bonecada, e a dependência do paternalismo de Estado... Mas não quero ir por aí. Tenho a idade que o corpo determina. Isso é uma coisa em que junto o Cristianismo ao Spinozismo, sem contradição. Reza a história que Jesus morreu aos trinta anos. Spinoza, por seu lado, no “Tratado Político”, defende uma lei em que só os que já têm trinta anos de idade poderiam ser elegíveis (para o poder). Em suma, chegada aos trinta - lembro-me do dia e da hora tal como uma pessoa se lembra de uma catástrofe - morri como cristã e atingi subitamente a maioridade política spinozista. Foi tudo muito rápido. Senti que mudei numa hora. Houve uma inflexão de curva. Em que é que esse acontecimento afectou a minha escrita? Naquele momento do fazer os trinta anos, foi como descobrir o Novo Mundo, e então percebi que tudo o que havia escrito até aí não era mais do que a antecipação inconsciente dum novo ofício que agora iniciava. Uma escrita mais real e sensível do que a anterior. Teve um certo carácter apocalíptico, porque, só ao fim de três décadas descobrir que afinal não era autora nenhuma mas o livro a re-escrever... é dramático. Por esta ordem de ideias, e respondendo concretamente à tua questão, aos trinta anos morre-se para a literatura e nasce-se para a escrita, é-se já muito velho para uma e ainda muito jovem para outra. As soluções do stylo - o eixo gravador, a que os árabes chamam “cálamo” e Salinger “viga” (seguindo o pensamento oriental) -, erguem-se sobre as questões do lege (ler, lei, Logos, razão). Escrever torna-se imperativo sobre ler (até porque a morte já bateu à porta, ganhamos a noção de que há pouco tempo para escrever tudo o que queremos e a ampulheta não pára de escoar os grãos). É, por isso, que aos trinta anos me tornei e-legível, quer dizer, modificando o sentido que Spinoza lhe deu, emergi do legível em que estava submersa. Mas suspeito que haja pessoas que passam pelos trinta anos sem se sentir “morrer” desta maneira, de qualquer modo, não posso falar por elas. A minha relação com o som também se transformou. Antigamente, chegava a consumir dez horas de rádio por dia. Agora é raro lembrar-me de o ligar, é como se só o silêncio (que não existe em absoluto, há o vento a roçar nas folhas e o bater do coração...) fosse música para os meus ouvidos; toda a música formalizada me soa a noise, até a música clássica cai nessa categoria. Mahler ou Rhys Chatham ou Buraka Som Sistema, é-me indiferente, oiço tudo com o mesmo entusiasmo quando quero “aquecer as articulações”, pois, a minha atracção pela dança aumentou geometricamente: o gelo não existe para quem dança. Quem quisesse fazer um pouco de psicologia, inventava-me logo um esgotamento. Nos dias que correm, apreciar o silêncio é visto como patológico ou como a antítese da liberdade de expressão... Ocorre-me Kafka: “Não diga isso, você não sabe a energia que reside no silêncio”.
A crise tornou a divulgação de novos textos mais difícil ou aguçou a criatividade de quem divulga?
Nunca foi tão fácil e barato divulgar um artefacto como na nossa época. Contudo, temos um problema que, anteriormente, devido à dificuldade de acesso aos meios, não existia. A divulgação muito facilitada e ostensiva produz o pólo oposto: como tudo se divulga e tudo se vulgariza, é difícil conseguir que algo invulgar se destaque. Distinguir-se no meio da overdose de informação que recebemos todos os dias por todos os meios (da TV ao Facebook, passando pelo e-mail e pelo word-of-mouth) é relativamente difícil. Há uma diluição de critérios. Não creio que a crise esteja a dificultar a tarefa, está é a incrementar a divulgação digital (em detrimento dos suportes tradicionais) por ser mais barata. Quantos sites existem na Internet - será que alguém sabe? É comum que uma pessoa disponha de uma série deles: blogs, redes sociais, Youtube, etc. O que vai servir de filtro numa imensidão dessas? Vamos navegando ao acaso, seguindo os amigos dos amigos dos amigos ou caçando palavras-chave num motor de busca? Esta super-abundância aguçará a criatividade? Tivemos milénios de superabundância da Natureza - isso aguçou-nos a criatividade? Só a dos indivíduos que a tinham especialmente aguçada. O resto será sempre o resto.
 Que conselhos darias a quem escreve e tem agora a mesma idade que tínhamos quando colaborávamos no DN Jovem?
Eu sou tão má a dar conselhos... Tem mesmo que ser? Olha, sejam genuínos. Borrifem-se para aqueles que vos querem “ensinar” a escrever, “ensinar” a pensar, “ensinar” a viver... Do ensinar ao aprender vai uma grande distância. Aprendam à vossa custa, porque não há outra maneira que seja genuína. Ninguém aprende a nadar antes de entrar na água, por mais “conselhos” teóricos que tenha recebido antes. Façam-se ao mar. Encontrarão correntes a favor e outras contrárias. Em qualquer caso, é preciso alcançar o Helesponto.
Para finalizar, queres dizer-nos o que tens publicado e quais os teus projectos em curso?
Publiquei mais de uma centena de trabalhos como colaboradora do DN Jovem, milhares de textos em blogs (no Na-Cama.Com e nos que se seguiram) e alguns contos nas revistas acima referidas, entre outras. Em livro, não tenho quase nada publicado: só três contos na Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa, que me proporcionou, pelo menos, duas alegrias. Uma foi conhecer o Rui Costacomo poeta e coordenador (ninguém podia prever aquela morte...). Outra alegria foi ser traduzida para Árabe, uma língua que considero admirável pela sua estrutura, organizada por físicos, geómetras, músicos, astrónomos... Diz um provérbio árabe: «A sabedoria dos Romanos está no seu cérebro, a dos Índios na sua fantasia, a dos Gregos na sua alma, a dos Árabes na sua língua». Fiz uma ou outra tentativa mais para publicar, mas é preciso ter tempo e paciência para cortejar o mercado, para adular os moldes das “capelinhas” (cada uma com a sua cartilha de mandamentos sobre o que é “escrever bem”) e sujeitar-se aos procedimentos burocráticos (enviar exemplares pelo correio como se estivéssemos no século XVIII ou assinar contratos manhosos cheios de ardis em forma de cláusulas). Há por aí muito vendedor de ilusões a aproveitar-se de quem quer publicar em papel. Por seu lado, os meios de auto-publicação online são neat and simple. Como os gate-keepers já não detêm exclusivamente os meios de publicação e de promoção, os autores podem hoje negociar melhor os seus “direitos”, se bem que o conceito de “direitos de autor” é, em si mesmo, trágico-cómico: a presunção de alguém achar que um discurso provém originariamente do seu eu e não de um agenciamento colectivo de enunciação... Nem sei como é que um típico literato de Esquerda consegue, de forma consistente, reclamar “direitos de propriedade intelectual” e, ao mesmo tempo, ser “anti-capitalista”, pois, está a capitalizar (com o duplo sentido de “a troco de capital” e “apropriação pela sua capita”) algo que não pertence a uma cabeça específica. Concebo um nome de autor como a toponímia de um local (por exemplo, uma cratera lunar chamada Aristóteles), serve de indicação para o leitor se orientar numa paisagem cheia de crateras (um pouco como os viajantes imaginavam figuras nas constelações para se guiarem no deserto). A única diferença é que os autores são estrelas errantes, crateras itinerantes. Agora acharem que são donos dum fluxo discursivo... é como um vulcão a pretender-se dono do magma terrestre só porque saiu por ali e não por outro buraco qualquer. Tresanda a feudalismo e as royalties são o imposto que o vassalo semiótico tem de pagar ao senhor autoral. Daí até às patentes da Monsanto sobre sementes vegetais e carne animal geneticamente modificadas (“criações de autor”) é um saltinho... A senda da sujeição à autoridade é tornar tudo propriedade de um nomos (sujeito/marca/estado): até o subsolo (taxa de ocupação do subsolo)! Ambições territoriais. Tomara eu ter tempo para “alavancar” uma montanha de inéditos (não-éditos). Por estilo, sou fragmentária. Não me inclino a escrever romances, e não é por “preguiça”, como a Agustina atribuía ao nosso “país de poetas”, numa entrevista. Quanto maior a extensão, menor a compreensão. Kafka, que eu cito muito porque fiz uma tese de Mestrado sobre ele, também o diz no conto d’ “O pião”: «Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. (...) Acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo, o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia anti-económico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; assim sendo, só se ocupava do pião enquanto rodava. (...)». Less is more. É uma questão energética e material que está no epicentro da actual crise económica: a política energética global tem sido suicidária. Aí subscrevo Ivan Illich: “Tanto os pobres como os ricos deveriam superar a ilusão de que MAIS energia é MELHOR”. Ao esticar muito, o elástico parte... Espero não ter esticado muito a entrevista. Obrigada pelo teu interesse.

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