3000€

José era apenas um mendigo na casa dos cinquenta e tal anos. Tinha uma história igual a tantos outros, que se confundia com as histórias daqueles que ele conhecia e acompanhava nas ruas. Às vezes nem ele mesmo tinha a certeza onde começava a sua história e acabava a dos outros. Desemprego tinha sido o primeiro sinal. Desemprego prolongado foi o segundo. José não conhecia colocação em lado nenhum apesar da sua habilidade para o desenrascanço. Era bom em bricolage, não havia móvel que não conseguisse montar, torneira que não conseguisse arranjar, fechadura que não conseguisse mudar. Também sabia consertar electrodomésticos, se conseguisse encontrar as peças que necessitava. Aliás, no desemprego vivia de biscates de arranjos de elecrodomésticos, mas depois foi-se tornando cada vez mais difícil encontrar peças que pudesse usar. Sabia também um pouco de mecânica, de serralharia, de soldadura. Mas não sabia muito de nada, não tinha estudos nem especializações. Era o seu problema, diziam-lhe no centro de emprego. Já tinha sido talhante, trabalhado num balcão de um café, varreu ruas, foi estafeta e ainda comercial. Por fim arrumava carros. Lá no centro de emprego mandaram-no para um curso, para ele tirar o 9º ano. Mas os meses passaram, terminou o curso, terminou a bolsa, ficou com o 9º ano mas o emprego nunca mais aparecia.

Tinha uma filha. Fora casado durante 4 anos e foi durante esse tempo que a menina nasceu. Depois veio o divórcio, a ex-mulher foi para outra cidade. Enquanto ela foi pequena via-a duas vezes por ano: Ano Novo e verão. Quando era adolescente já só a via uma vez no verão. Depois só falava com ela por telefone, e os telefonemas escacearam. Agora só lhe telefonava pelo Natal e nunca lhe disse que estava na rua. Parece que tem duas netas. Nunca as viu. Deu uma morada falsa para que a filha tivesse para onde enviar as fotografias e dizia sempre que as meninas eram bonitas.

O alcoolismo veio depois. Já depois de dormir debaixo de vão de escada, protegendo-se com papelões do vento e do frio. Tinha um colchão encontrado à porta de uma casa, um saco-cama roubado numa estação de comboio, mantas fornecidas pela Cruz Vermelha. Para além disso havia uma caixa onde guardava um pouco de sabão, a fotografia da filha em pequena, uma mecha do seu cabelo e uma fotografia dos tempos da tropa. Ainda havia um relógio, que fora do seu pai, quinquilharia velha que nem sequer trabalhava.

De manhãzinha cedo ia aos balneários públicos. A roupa que vestia depois do banho era sempre a mesma. O corpo podia estar limpo, mas o cheiro da roupa suja persistia.
O dia continuava igual aos outros. Ir à Cruz Vermelha buscar comida ou agasalhos. Falar com a Assistente Social. Ver os  editais do Centro de Emprego. Vender Bordas d’Água.
José dava tratamento diferente ao dinheiro que fazia a vender Bordas d’Água e dinheiro que encontrava por acaso na rua. Com o primeiro comprava comida, tabaco, vinho e cerveja. Com o segundo comprava raspadinhas.
Naquela tarde encontrou 2€. Guardou-os no bolso até que encontrou uma papelaria. Entrou e comprou uma raspadinha. O bilhete era premiado: 3000€. O valor era demasiado alto para que lho pagassem ali na papelaria. Indicaram-lhe uma instituição bancária onde poderia ir buscar o dinherio. E José viu-se na rua com 3000 no bolso.

O que haveria de fazer? 3000€ só o iriam tirar da rua poucos meses, se os poupasse bem. O desemprego continuaria, o dinheiro acabaria, e voltar à rua era sentença certa. Quanto muito podia investir numa tenda, que ao mais pequeno descuido seria roubada. Empreender também não era solução. Aquilo que o podia desenrascar não exigia dinheiro, mas sim peças e clientes.
Passou por uma loja de chineses e comprou um fato-de-treino, um impermeável e umas sapatilhas. Foi até uma pensão sua conhecida. 25€ a noite. Franziram o nariz, mas ele mostrou o maço de notas. Deram-lhe o quarto. Lavou a roupa que comprou e meteu-a a secar no radiador. Tomou banho e deitou a sua roupa suja e mal cheirosa fora. Deitou-se nú, mal dormiu.
De manhã saíu do hotel. Pagou e a rapariga, que era a mesma que a tinha atendido à noite, segurou-lhe a mão com força:

- Tenha cuidado, não mostre o dinheiro. Ainda lho roubam. E gaste-o bem.

José foi até ao balneário naquela manhã. Não tomou banho. Mostrou os 2495€. Porque já não eram 3000. Todos disseram o mesmo:

- Não mostres o dinheiro.

- Poupa-o bem!

- Aluga um quarto!

Foi à Cruz Vermelha. Passou pela Assistente Social. Todos lhe disseram o mesmo. Almoçou num tasco com refeições a 5€. Voltou à mesma pensão. Desta vez dormiu. No outro dia de manhã tinha 2910€.

Fez a mesma ronda: balneário, Cruz Vermelha, Assistente Social. A todos disse o mesmo:

- Fui esta manhã a uma agência de viagens. Vou fazer uma viagem aos Açores.

De todos ouviu a mesma resposta:

- Não faças isso, tens falta do dinheiro.

- Vais gastar tudo num instante.

- O dinheiro pode fazer-te falta para outras coisas.

- Não tens vergonha? Tens uma sorte dessas e vais gastar o dinheiro numa viagem?

- Dá Deus nozes a quem não tem dentes. Esse dinheiro devia era ter-me saído a mim.

- Há gente que não merece a sorte que tem.

Mas ir aos Açores era o sonho da sua vida, e aquela oportunidade não se repetiria. Antes de abalar telefonou à filha e despediu-se dos companheiros de rua. Passou por uma grande superfície comercial e comprou mais fatos-de-treino, meias, cuecas. Uma mala de viagem.
Morreu no dia em que ia regressar. Um enfarte. Ainda sobrou dinheiro para o funeral, e ficou enterrado nos Açores. Toda a gente pensou que ele tinha ficado sem dinheiro para voltar.

1 comentário:

  1. Lá para o fim fiquei a pensar que ele ia a Açores visitar a filha mas afinal não.
    Teve azar o homem, as pessoas lá se acharam cheias de razão e ele, mesmo morto, não haveria de gostar nada disso.

    Na revista 2 desta semana fizeram uma reportagem do Borda d'Água e falavam também de um vendedor de rua. Também leste?

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