Assuntos de Escrita - Entrevista com Fernando Évora

Fernando Évora é autor de Amor e Liberdade de Germana Pata-Roxa e No País das Porcas-Saras (editora Esfera do Caos) . Podem saber mais na sua página de autor. Aceitou gentilmente ser entrevistado para a nossa rubrica, Assuntos de Escrita.



Pode falar-nos mais sobre si? De que modo a escrita apareceu na sua vida?

Quando se deu o 25 de Abril eu andava na terceira classe. Fruto da época, em que a liberdade nos deslumbrava (e era tão bom, e tenho tantas saudades de ver os olhares cor-de-sonho dos grandes), a minha professora da escola primária sugeriu-nos fazer redações sem tema, aquilo a que então se chamava “textos livres”. Provavelmente terá sido esse o momento em que despertei, sem o saber, para a escrita. Passou a ser o meu passatempo preferido escrever textos livres. Um pouco sobre tudo: escrevia sobre a metamorfose das borboletas, a esperança de vida dos insectos ou das tartarugas, aventurei-me na poesia e adorava contar histórias inventadas (não usava ainda o termo ficção). Cresci e fui sempre um leitor razoável. Saí de Faro e fui para Évora. Iniciei a minha vida de professor pelo Sul do país. A escrita (a tal que dizem ser escrita criativa, mas eu não gosto do termo) foi ficando esquecida. Ou melhor: adormecida. Fui vivendo. Até que um dia me resolvi a pegar na caneta outra vez (é verdade, já havia computadores mas regressei pela caneta, talvez para lembrar os tempos dos textos livres). E depois… depois dei porque havia histórias e mais histórias que me descobriam. E só tenho pena de não ter tempo de as contar todas. Pena e medo de um dia não as poder contar mais e assim, de algum modo, as trair.



2 - As ligações ao Algarve e ao Alentejo são muito visíveis na sua escrita. Porque é que isso aconteceu?

Sou o primeiro algarvio de uma família de alentejanos. Lembro-me de, à mesa de jantar, haver queixas sobre a índole algarvia que muito me irritava. Devo ter-me dado por vencido, pois a minha mãe conta-me que certa manhã, quando ela me disse qualquer coisa sobre o Algarve, eu resmunguei e respondi: já não sou algarvio, sou alentejano! Mais tarde vim para o Alentejo. Vivi seis anos em Évora. Voltei para o Algarve, Vila Real de Santo António. Depois regressei ao Alentejo para Odemira. Agora moro em São Teotónio, a poucos quilómetros da ribeira de Odeceixe, que divide administrativamente os dois distritos. Passo-a todos os dias da semana para ir trabalhar a Aljezur, no Algarve. Não vou dizer que sou alentejano. Não, sou algarvio. Há uma lenda indiana cuja moral é qualquer coisa como “segue o teu caminho mas não esqueças as tuas origens” (e que, de alguma maneira, alimentou um conto meu chamado “liberdade”). As minhas são algarvias e alentejanas. Tenho um amor imenso por Faro, a minha cidade natal. Mas também alguma desilusão, como é próprio dos grandes amores. Sinto-me nostálgico em Évora, eufórico em Vila Real de Santo António, tranquilo em São Teotónio. Gosto de passear por todo o lado, sinto-me em casa no Algarve e no Alentejo, gosto sinceramente das pessoas com que me cruzo, apetece-me muitas vezes abraçá-las, não hesito numa possibilidade de conversa.

Porque escrevo sobre estes locais? Porque as histórias que me aparecem são (quase) sempre destes locais. A literatura que me seduz é uma literatura que não deixe o leitor indiferente, que lhe dê algum trabalho a digerir. Sinto que tem de ser sobre o que conheço, e estas são as terras e o povo que conheço. Dir-me-ão que isso é uma estética demasiado neo-realista. De certa forma será. Mas é assim que funciona comigo. De qualquer modo, noto que os não pretendo, nos meus livros, ser uma espécie de escritor regional, quase folclórico no sentido etnográfico do termo. As histórias que têm este cenário são universais. Aliás, os meus livros vendem tanto no Sul como no Norte.



3 - Escreve muitos contos. Que há na narrativa curta que o atraia tanto para a escrita?

O facto de escrever muitos contos pode resultar mais de uma questão profissional. Tenho uma profissão que me alimenta e ajuda a família. Sou professor. E gosto imenso de o ser. Todavia, essa profissão não deixa muito tempo livre. Ora a escrita de um romance implica uma disponibilidade continuada que não tenho. Se andamos àvolta dele muito tempo e alternadamente, e isso já me aconteceu, quando o acabamos já não somos o mesmo que o iniciámos, o que coloca problemas de coerência.

Mas haverá, naturalmente, uma sedução pelo conto. Gosto da sua estética. Como em poucas páginas se deve mexer na ferida. Ser directo e claro. Um bom conto não é fácil de ser escrito. Muitos romancistas não o conseguem fazer.  E a verdade é que mesmo quando romanceio, me acaba por sair uma escrita que funciona quase como uma caixa chinesa em que as histórias saem umas de dentro das outras, como se fossem contos interligados. Talvez afinal seja natural a minha escrita de contos e não uma questão de tempo disponível, não sei.





 4 - De futuro iremos encontrar escritos que saiam do ambiente sul de Portugal ou continuaremos a ver a mesma esfera de influência?

Não sei se tal - sair do sul de Portugal -, acontecerá. Para já escrevo uma espécie de saga familiar passada no século XX numa aldeia da serra algarvia. Tenho um outro livro quase finalizado e que tem como cenário uma cidade imaginária com semelhanças físicas a Odemira, mas que representa Portugal. Trata-se de um livro de contos feito a meias com o pintor Gonçalo Condeixa. Como se vê, tudo o que está para sair aponta ainda para o Sul. Talvez faltem mais livros que tenham o Sul como cenário (isto é verdade, sobretudo, para o Algarve, já que o Manuel da Fonseca retratou tão bem o Alentejo, mas ao Algarve faltam os mitos literários).

Tenho sempre a sensação que não sou eu que crio as ficções, mas sim elas que me descobrem. Eu tenho de ter o trabalho para as honrar e escrevê-las da melhor maneira possível. Por isso, se me aparecer alguma que se passe em Braga, Monção, na Polónia ou na Nigéria, arranja-me um grande problema, mas lá terei de a escrever. Todavia, suponho que tal não acontecerá. Bem sei que nos tempos que correm se vê muitos escritores da nova geração a saltar de portas e construir narrativas em cenários internacionais ou indefinidos. Talvez isso não seja só por interesses comercias, talvez seja apenas um efeito da globalização. Comigo, acho que terei dificuldade em abandonar este povo a que pertenço e que amo. Faltar-me-á o rasgo intelectual, porventura.
 

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