Barco Negro

“De manhã, que medo
que me achasses feia!
Acordei tremendo
Deitada na areia...”

Acordei naquela madrugada, a última, ao som de tambores que ao longe miúdos tocavam no areal. O dia mal tinha nascido, mas o sol ainda não te acordara. Tínhamos os corpos nus por cima da areia, frios da noite, quentes do amor. Os nossos membros enroscados, os narizes juntos: os lábios adormeceram num beijo.
E tive medo, medo, de acordares e de me achares feia, dos olhos inchados do sono, dos lábios já sem a cor do batom. Enchi-me de coragem, beijei a tua face e tu despertaste.

“Mas logo os teus olhos
disseram que não
e o sol penetrou
no meu coração”

O teu olhar acariciou a minha beleza, chegou-me dentro e aqueceu o meu coração de amor.

“Vi depois numa rocha, uma cruz
e o teu barco negro
dançava na luz...”

Ergueste o teu elegante corpo e olhaste o mar a fazer-se cinzento. Fui forte e não chorei, mas tu tiveste de partir. Eu nada disse, porque sempre soube que um dia irias embora de mim, e apenas resistiria da tua memória uma cruz cravada na rocha.
O céu tornou-se negro, e, por entre as nuvens, os raios de sol alumiavam o teu barco, a navegar entre relâmpagos e chuva. Eu na praia continuava nua despedindo-me do teu corpo. Pingas de água caiam sobre mim, tornavam-se as lágrimas que a minha coragem afastara.

“Vi teu braço acenando,
entre as velas já soltas...”

Acenei-te e sorri-te. Penso que não me viste. Acenavas porque sentias que eu ainda estava ali a ver-te. O teu barco ficou negro como negras eram as velas dos barcos que iam de Atenas a Creta, levar o sacrifício de rapazes e raparigas à fúria do Minotauro. Negro de luto.

“Dizem as velhas da praia que não voltas
São loucas!
São loucas!”

Todos os dias vou à praia a ver se te vejo voltar. Dizem que estou louca. O teu barco nunca mais foi visto, perdeu-se nas ondas da tempestade. Não! As loucas são elas.
Mas não. Porque sei que ainda és. Sinto-te em todo o lado: tu próprio mo segredas ao ouvido.

“Eu sei meu amor:
Nem chegaste a partir
Tudo, em meu redor,
Me diz que estás sempre comigo.”

Lembro-me ainda de, entre beijos e carícias, brincares comigo na praia, e lançares areia para cima de mim e eu sem gostar:

“No vento que lança
areia nos vidros;”

Continuas a brincar comigo. Outras vezes cantavas, só para mim, à noite, para eu adormecer, como se criança eu fora:

“Na água que canta;”

Ouço a tua voz na chuva. Ouço-a no mar que te engoliu. Sinto-te nas noites de inverno, no fogo do lume, que tu costumavas acender;

“No fogo mortiço;”

E deixavas morrer em brasas, para no dia seguinte eu assar o peixe que trazias do mar. Sinto ainda na nossa cama o teu corpo quente. Pela manhã está o sinal do teu corpo nos lençóis:

“No calor do leito;”

Continuo a por o teu prato na mesa. A tua roupa continua no armário. E quando me sento, sei que no lugar vazio ao meu lado também tu estás sentado:

“Nos bancos vazios;”

Pescador-fantasma, continuas a acompanhar-me, e eu sem medo, jogo a mão ao vazio, mas não agarro nada. À noite beijas-me e sopras-me ao ouvido: “Eu sei meu amor”, sei que sofres, mas estou aqui:

“No meu próprio peito
Estás sempre comigo.”

Só tenho pena de naquela noite na praia a tua semente não ter deixado fruto no meu ventre, para eu poder viver melhor a solidão do teu corpo vazio ao meu lado. Canto então para afastar o sofrimento.

Poemas de David Mourão-Ferreira.

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