Do Jardim das Hespérides ao Jardim do Éden

Como aluna desta faculdade* quis responder ao apelo que foi afixado em vários sítios: apelo à participação na revista comentário pela parte de professores, alunos e funcionários. O tema de “Jardins e Labirintos” suscitou-me interesse e resolvi escrever um artigo.
Estou longe de pegar num tema desconhecido. Todos sabemos da nossa comum proveniência de um pseudo povo indo-europeu, que é a base de toda a cultura da Índia ao Ocidente. A teoria é mais conhecida por causa da origem das línguas, mas a ideia de uma religião indo-europeia que depois variou conforme os povos não é totalmente desconhecida.
Há muitos temas de religião e mitologia (chamar-lhe-emos apenas mitologia) que se podem confrontar e ver pontos em comum (e também os divergentes) e tentar encontrar uma luz acerca do mito original.
Não me proponho a tão grande empresa: sinto-me incapacitada. Deixo-a para os especialistas e talvez mesmo, para os sábios. No entanto, como interessada pela mitologia, especialmente pela clássica, não quis deixar de fazer um artigo que de algum modo falasse disto, e se encontrasse com o tema “Jardins e Labirintos”.
Digo agora porque falo de mitologia e evito o termo religião. É certo que um dos “temas” que irei pegar é o Jardim do Éden, que aparece no primeiro livro da Bíblia: Génesis. Mas é conhecido de todos, e assumido pela própria Igreja, que teve de ceder perante a evidência do evolucionismo, que o Livro dos Génesis não corresponde à realidade, mas é apenas uma representação desta, uma leitura dos Homens da palavra de Deus.
Sem querer entrar em grandes pormenores, nem a querer definir mito, digo aqui que é a mito que a isto soa, e por isso falo em mitologia.
Não se pode negar, dadas as evidentes parecenças, as influencias dos povos Sumérios e das suas histórias nestes primeiros mitos da Bíblia.
São portanto dois mitos que confronto: o greco-latino do Jardim das Hespérides e o Bíblico do Jardim do Éden. Tão longe um do outro: o primeiro jardim situar-se-ia no Ocidente, em Marrocos; o segundo no Oriente, no Iraque. Contudo tão próximos também.

1.                 As maçãs

Símbolo da sabedoria, ligada ao feminino, a maçã aparece tanto num como noutro como objecto essencial de passagem a uma iniciação. Num a sabedoria dá a vida, noutro, dá a morte. É uma diferença que vem da diferença do carácter dos dois povos. Nós, influenciados por ambos, oscilamos na balança. Umas vezes sonhamos com a imortalidade que a sabedoria nos pode dar: a obra feita em vida e que perdura depois da nossa morte. Outras lamentamos a infelicidade que o conhecimento nos traz: sabemos qual vai ser o nosso trágico fim, e ao desacreditar numa possível vida depois da morte, ficamos depressivos pelo nosso fim absoluto. E vem então a nostalgia da felicidade dos ignorantes, cujo símbolo máximo são as crianças e a sua inocência. Inocência que perdemos inevitavelmente durante a adolescência.
No Jardim do Éden a árvore proibida, no centro do jardim, é a árvore da ciência do bem e do mal. No entanto, comer aquele fruto, ganhar ciência e capacidade de discernimento e de distinção entre o bem e o mal, matava.
Ou melhor: ficava-se a saber que se morria.
Nada mais é que o perder da infância, uma passagem, a adolescência do homem, altura em que a capacidade de entendimento cresce: mas o saber das coisas é incomodativo: saber que para além do bem existe o mal, saber que caminhamos inevitavelmente para a morte.
Todos sabemos a história: Adão e Eva viviam felizes e inocentes. Caminhavam ao lado um do outro mas sem que sentissem vergonha pela sua nudez. É a felicidade da ignorância, de que tanto se fala, e se tem falado.
Entretanto Eva é espicaçada pela serpente, que lhe desmente a palavra de Deus, e lhe promete que não morrerá. Deus não quereria que eles comessem o fruto da árvore proibida, porque atingiriam um conhecimento do bem e do mal e seriam como ele.
Eva não resistiu à tentação. Comeu e deu a comer a Adão. Imediatamente perderam a inocência, assim que obtiveram a ciência. Deu-se a Queda do Homem.
Uma passagem toda ela repleta de culpa, originária do pecado original, onde a mulher é a principal culpada, ou por outras palavras, o agente da acção, a principal interveniente. O nascimento de Maria Mãe de Deus, concebida sem pecado original, conseguido pelos pais não terem tido relações, veio dar origem a uma nova era, fundada por um homem-deus, Jesus, que quebra com toda a tradição até aí.
Não nos podemos esquecer que o pecado original será fortemente conotado com a relação sexual. No entanto, Adão e Eva (que se chamava Virago, e que Deus só chama Eva depois de comer o fruto) só se conhecem depois de expulsos do Paraíso.
É um ponto de vista que culpabiliza a mulher, por ter sido ela a primeira a ceder, e por ter levado Adão a comer o fruto. Mas Eva acaba por ser o ponto central desta passagem, e o seu meio principal. É ela a primeira a perder a inocência, ou melhor, a adquirir o conhecimento. A ciência e o senso comum mostram-nos que são as raparigas a chegar primeiro à puberdade e a dela saírem. É ela que também sofre a maior mudança, pois também muda o nome.
É depois pela mão de Eva que Adão recebe o fruto. Talvez referencia às antigas sociedades matriarcais, aos seus antigos ritos. Ou talvez dizendo que o homem não é capaz de viver sem a mulher, sem a sua sabedoria e maturidade. Do mesmo modo que ela depende dele quando lhe é entregue, quando Deus a entrega à sua protecção.
A má interpretação do crescimento por parte dos homens leva a esta culpabilização, a uma nostalgia da perda da infância e da inocência, a uma vergonha do sexo.
A Héracles são dados dez trabalhos que cumpriu, mas tendo Eristeu lhe desqualificado dois, são então aumentados o número de trabalhos. O décimo primeiro é o de roubar as maçãs do Jardim das Hespérides. Aqui já o fruto é explicitamente a maçã.
Enquanto que o Jardim do Éden seria a Oriente, este agora situa-se num lugar mítico a Ocidente, onde os cavalos do Carro do Sol terminavam a sua jornada e onde Atlas sustinha os céus. Não nos esqueçamos da semelhança entre os vocábulos Hespérides e Hespéria. A Hespéria para os gregos era a terra colocada a Ocidente. Primeiramente teria sido a Península Itálica, depois a Ibérica. Seria um lugar mítico a Ocidente, não longe da ilha dos Bem-Aventurados; por si só já fascinante para os clássicos, ou não fosse o lugar onde o sol se punha. Um lugar mítico, colocado num extremo do mundo, do mesmo modo que o era o jardim do Éden.
Neste jardim havia umas macieiras que geravam pomos de ouro. Tinham sido plantados por Hera, quando esta os recebeu como presente de casamento de sua mãe Gaia (Mãe Terra).
Quem guardava as macieiras eram as filhas de Atlas, as três Hespérides, Egle, Erítia e Hesperaretusa.
No entanto elas já tinham roubado maçãs, pelo que agora estava como guardião vigilante Ládon, um dragão. Há fontes que o indicam como primogénito de Gaia. E então temos a ligação das maçãs à terra e à mulher.
Guardado por três mulheres, pertencendo a uma, Hera, oferecidas por outra, Gaia. As maçãs de ouro, ao contrário do fruto bíblico, prometem a imortalidade. Um modo diferente de entender o adquirir do conhecimento: faz-nos crescer e não sofrer. Talvez esteja de algum modo ligado à filosofia, nem que fosse no âmago destes povos e no seu modo de pensar. Mas a verdade é que tanto estóicos como epicuristas consideravam o conhecimento e o estudo um dos modos de afastar o medo da morte.
E por muito heróico que seja este mito e triste que seja o bíblico, o grego está muito mais longe do humano que o segundo.
Eva oferece a maçã a Adão. O conhecimento é transmitido por um ritual, a maçã é oferecida de livre vontade. No entanto Heracles rouba as maçãs. Engana Atlas, que até as vai apanhar apenas para se livrar por um momento do pesado fardo de sustentar os céus e mata o dragão. As Hespérides dão de boa vontade as maçãs. Mas elas já tinham mostrado ser más guardiãs.
Não há a mesma cumplicidade que há entre Adão e Eva.
A sabedoria de Gaia, da mãe terra, feminina, é roubada por caprichos e manhas dos homens. Pode não haver culpabilização, mas o acto foi mais atroz. Enquanto no mito bíblico temos uma serpente como personificadora do mal, aqui é o homem de sua livre vontade que o comete. Não evita a atrocidade humana.
Felizmente, assim que Héracles levou as maçãs a Eristeu, este resolveu devolvê-las. Deu-as a Atenas (deusa da sabedoria, Minerva romana), que as deu às ninfas, pois os bens de Hera não lhe podiam ser retirados. É assim que a sabedoria volta à origem, à terra, à mãe e o mundo é reequilibrado. Do mesmo modo que Jesus veio reequilibrar, quebrando com o passado.

2.                 A serpente

Um ser presente em muitos mitos, e com uma especial relevância na mitologia de origem indo-europeia. Originariamente não representa o mal, está em ligação com a Terra Mãe, com o matriarcado, e simboliza a sabedoria.
No mito de Apolo, a serpente Píton protegia um oráculo. Ora, o oráculo está intimamente ligado à sabedoria. Por ordem de Hera, Píton persegue Latona quando está grávida dos gémeos Ártemis e Apolo. Mais tarde, para se vingar do mal feito à sua mãe, Apolo mata Píton, e fica com o seu oráculo. Contudo, não lhe deixa de fazer as devidas homenagens. Instituiu em Delfos os jogos Píticos, que eram jogos fúnebres a Píton. A sacerdotisa que profere o oráculo continua a chamar-se Pitonisa.
Com o passar para a era do patriarcado o poder da serpente, ligado à mulher, torna-se mal visto. A serpente torna-se então um obstáculo a ultrapassar para adquirir a sabedoria. A mulher não passa de um obstáculo entre o homem e a sabedoria.
Nos Gênesis torna-se num confronto, entrega-se o poder da mulher ao homem, que a possui e a afastada da serpente, ficando ambas inimigas. No entanto há um maior equilíbrio. A mulher dá sabedoria ao homem, quando lhe entrega o fruto, e este dá-lhe protecção quando são expulsos do paraíso. E ambos ficam afastados da serpente, ser desprezível, rastejante, no início da cadeia da evolução.
Apesar de expulsos do paraíso (ou melhor, vendo que o mundo que os rodeava não era um paraíso, como era para eles o mundo quando crianças) Adão e Eva evoluem, afastam-se da animalidade, e juntos constroem a sua vida, por meio da partilha.
Aquando da nova era, o filho de Deus nasce da nova mulher, imaculada e afastada do pecado original que o dá à luz no interior de uma gruta: é o retorno à Terra mãe e o regresso do equilíbrio.
No mito do Jardim das Hespérides a serpente é o Dragão Ládon, filho primogénito de Gaia, e é morto por Heracles, que representa a força masculina (viri), que rouba as maçãs. Que rouba a sabedoria que Gaia ofereceu a Hera. Ládon é morto e deste modo também se afasta a primitividade. As maçãs são devolvidas, e o mundo é reequilibrado, livre de uma influência nefasta.
A serpente na Bíblia torna-se a representação do mal absoluto, no demónio, e acompanha o imaginário da vida de Santos. S. Jorge e S. Miguel Arcanjo lutam com ela tal como lutou Apolo.


* À altura era estudante na FCSH/UNL

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