Nas Tuas Mãos - Despir da Sensualidade


 «Nesse verão de 1968 fui presa por nudismo, com mais cinco amigos, numa praia deserta para os lados de Sesimbra. Já se usavam biquinis, mas a grande moda do ano eram os fatos de banho sem lados. Jenny costumava dizer, olhando para as revistas de moda com um ar desanimado: “ Qualquer dia os costureiros ficam no desemprego.” Quando eu voltei para casa, depois de o meu pai pagar a fiança e de três dias de castigo na prisão de Caxias, Jenny sorriu, abraçou-me, beijou-me e serviu-me uma limonada com um bolo de chocolate acabado de fazer. Antes de ir buscar Natália, ainda voltou a sorrir e disse: “Agora que a pele se tornou um tecido, as pessoas já não têm como se despir. Que tristeza. É o fim do erotismo.”»
Inês Pedrosa

Nas Tuas Mãos - Despir da Sensualidade

Durante uma leitura que me surpreendeu pela positiva (juro que não esperava, nunca tinha lido Inês Pedrosa) deparei com esta frase: “Agora que a pele se tornou um tecido, as pessoas já não têm como se despir. Que tristeza. É o fim do erotismo.”
Falar de moda implica muitas vezes falar de roupa. Claro que a moda não acarreta apenas vestuário, mas todos aqueles “mimos” (expressão apanhada num documentário sobre selecção natural) de que vivemos rodeados, dos sofás em que nos sentamos às obras de arte que colamos nas paredes de nossas casas. Os próprios comportamentos sofrem modas.
Mas desta vez vou ser muito tradicionalista e vou falar de roupa. Não de passerelles, não quero falar de arte. Quero apenas falar de quotidiano.
Vamos começar tudo de princípio: pré-história, Jardim do Éden, tanto faz. A verdade é que no início andávamos todos nuzinhos, assim mesmo... em pelota! Está certo, nessa altura estávamos muito cobertos de pêlo. Não se poderia, com toda a certeza, ter mais do que erotismo de macaco.
Os pêlos foram caindo, e peles de animais foram cobrindo os corpos humanos. A era glacial aproximava-se, e as vestes eram, acima de tudo, para proteger o corpo. Mas... bem podemos imaginar um homem-pré-histórico a [des]cobrir as vestes da mulher-pré-histórica, e a descobrir a maravilha que estava embrulhada...
Enquanto a era glaciar aos poucos desaparece, a roupa persiste. Tornou-se um hábito. Mesmo quando no estio era dispensável. Sabemos que os Homens desta altura em nada eram diferentes de nós. Só lhes faltava descobrir ou inventar, ao longo de milénios, as pequenas coisas de que estamos rodeados. Os “mimos”. A sobrevivência da espécie já não está ameaçada e agora o sucesso de cada ser humano não depende de como sobrevive no meio natural, mas sim de como vive no meio social.
Faltava descobrir que as roupas leves no verão até protegiam a pele. Descobrir, aos poucos, que despertar a curiosidade pode despertar a sensualidade, que o “saber tapar” suscita o erotismo.
As palavras que Inês Pedrosa fez a sua personagem dizer revelam uma preocupação: a perda do erotismo. Se não se tapa o corpo, se já todos o conhecem, não é despertada curiosidade em o descobrir. Um homem já não se surpreende ao despir pela primeira vez uma determinada mulher porque já lhe tinha adivinhado o corpo.
Numa altura em que se perdeu a desculpa da vergonha (nascida da sacralização do amor: “o meu corpo é só para ele; o meu corpo é só para ela”), pensa-se ter perdido a necessidade de tapar o corpo, vendo neste gesto uma necessidade primitiva indispensável apenas no Inverno. Achando-nos subdesenvolvidos, porque ainda tapamos os nossos corpos no verão, se bem que pouco. Recorremos ao nudismo e ao naturalismo nas praias mais recônditas, para de algum modo sermos evoluídos e civilizados. Porque achamos civilizado olhar o corpo de outra pessoa sem sentir qualquer sinal de desejo. Sem querer estamos a voltar ao primitivismo.
Contudo, se atentarmos, vemos que a maioria dos adeptos do nudismo são casais. Porque não há nada a descobrir no corpo um do outro. Como estão juntos, ver os outros nus não tem qualquer interesse, e é como se estivessem os dois a sós. Já são amantes há muito.
Não há nenhuma regressão, há antes uma tentativa de regressão que não dá resultado. É inevitável estarmos sempre a evoluir. Talvez apenas tenha mudado o modo de vermos as coisas. O corpo há-de ser sempre um local de sensualidade, e o amor teima em ser sagrado.
O sexo e o amor estarão sempre ligados a um acto íntimo. Não estamos a ser púdicos quando cobrimos o corpo. Apenas estamos a dizer: “isto não é de todos, é só de quem eu quero.” Talvez seja por isso que se perca o respeito por alguém que não saiba cobrir o corpo devidamente.
Vestirmo-nos não é só um acto de necessidade fisiológica ou social. É um viver da sensualidade. O suscitar da curiosidade e da descoberta, tão humanos.
Claro, que cobrirmo-nos não significa andar de burca.
Talvez assim se explique a explosão da moda das tatuagens e dos piercings. Numa época em que o corpo se libertou da vergonha de outros tempos, dá-se-lhe uma outra pele, uma obra de arte permanente no corpo. De algum modo, estamo-nos sempre a cobrir.

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