Sombrinha Vermelha


O médico olhou-me complacente, pedindo-me mais uma vez que contasse tudo. Tudo aquilo que já estava farta de contar, que já tinha contado à polícia, e ao que parece ninguém tinha acreditado. E era por essa mesma razão que eu estava em frente daquele médico, que também não iria acreditar, mas que me iria certificar como louca, certamente. Decidi mentir, finalmente, para poder continuar com a minha vida. Ou melhor, começá-la, pois sou ainda tão nova e com tanto por fazer.

Mas recordo perfeitamente o que aconteceu.

Chovia muito, e a minha mãe pediu-me que fosse visitar a minha avó, que sendo já muito velhota, viúva e a viver sozinha, andava-se a sentir adoentada há algum tempo. Era meu costume e da minha mãe irmos visitar as duas a avó, mas quando a minha mãe tem muito que fazer, eu acabo por ir sozinha. Claro que, com aquela chuva não me apetecia mesmo nada ir, ainda por cima porque tinha de ir a pé. Mas não tinha outro remédio.

Deu-me um saco com umas coisas para eu levar à minha avó: umas bolachas e umas laranjas. E claro, as recomendações de sempre:

- Não dês conversa a ninguém! E vai pela zona das lojas, que tem mais gente na rua!

Claro que nunca lhe dava ouvidos, e muito menos num dia de chuva. Eu ia sempre para a casa da minha avó, que morava a uma distância de dois quarteirões, por um caminho mais perto, que inclui passar por um campo de desportos e por uma passagem que há para carros por debaixo dum prédio. É verdade que encontrava pouca gente por aquele lado…

Foi assim que segui, o saco numa mão, e a minha sombrinha vermelha na outra. Eu adorava aquela sombrinha, apesar de chamar muito a atenção. Normalmente não a usava na escola, porque me fazia ser alvo de chacota por parte dos meus colegas, e usava qualquer oportunidade fora da escola para a usar.

Passei perto do campo de jogos e vi uns rapazes a jogar futebol. Conheci as caras de alguns, da escola. Continuei o meu caminho sem nada lhes dizer, pois não falava com eles. Eram rapazes mais velhos, ligados ao desporto, populares entre as raparigas. Falavam com outro tipo de pessoas que não eu, uma filha a fazer o recadinho da mamã, uma netinha a ir visitar a avozinha.

Mas depois ouvi um dos rapazes a chamar por mim. Parei e olhei para trás:

- Olá! Precisas de ajuda? Nós já terminámos de jogar e eu vou para esse lado…

A minha mãe disse-me para não falar com ninguém, mas aquele era um colega da escola. Fazia parte do grupo dos rapazes que eu achava giros. Nunca pensei que ele olhasse para mim.

- Sim… podes pegar-me no saco. Vou visitar a minha avó que está um pouco doente.

- Oh! Sem problema. Deixa-me apenas abrigar debaixo da tua sombrinha para não apanhar chuva! Se a tua sombrinha não fosse vermelha nem te tinha visto!

Ele disponibilizou-se para me levar até à porta do prédio da minha avó. Que mal tinha isso? No caminho fomos falando. Da escola, dos colegas, das coisas que gostávamos. Ele falou muito de desporto, pois gostava mesmo muito de praticar desporto e pretendia fazer estudos nessa área. Eu por mim falei de música e de filmes e dos artistas que eu admiro. Ainda sou muito nova, e não faço ideia do que queira estudar.

- Posso-te ajudar e levar o saco até à porta do apartamento da tua avó. – Tínhamos chegado à entrada do prédio da minha avó, e quando ele me fez esta proposta senti que estava a abusar da minha simpatia. As palavras da minha mãe soaram-me na memória. Disse-lhe, educadamente, que não era necessário.

Mas ele continuou a insistir.

- A minha avó não gosta de receber pessoas em casa que não conhece. Nem mesmo que sejam meus colegas de escola. Desculpa, mas o melhor mesmo é ires embora.

E ele continuava a insistir.

Por fim disse-lhe que de maneira nenhuma ele iria entrar naquela casa, e que o melhor mesmo era se ir embora.

Foi então que tudo aconteceu. E é a partir daqui que tenho de mentir ao médico, à polícia, à minha família e a todas as pessoas que eu conheço para evitar que me coloquem numa instituição psiquiátrica.

O meu coleguinha de escola transformou-se, mesmo na minha frente, num lobo enorme e feroz e começou a latir.

A minha avó abriu então a porta do prédio. Eu ainda não tinha tocado à campainha do seu apartamento, mas calculo que me tenha visto da varanda a discutir com o rapaz. Ela olhou para o lobo muito assustada e tentou puxar-me para dentro.

Mas o lobo atacou-a e fê-la cair no chão, inanimada. Então eu gritei muito alto. Pedi socorro. O lobo tinha os dentes arreganhados, pronto a morder a minha avó, e certamente a mim a seguir.

Comecei a ouvir alvoroço nas escadas. Os vizinhos iam acudir ao meu grito. Então, o lobo fugiu. Mas o mal já estava feito, a minha avozinha nunca mais acordou.

Disse ao médico, e posteriormente revi o meu depoimento da polícia, que tinha sido o mesmo rapaz que empurrara a minha avó com força para o chão. Mas nunca mais falei do lobo.



Publiquei esta adaptação do "Capuchinho Vermelho", há uns bons anos, num blog brasileiro, cuja referência perdi e não consigo reencontrar.

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