Esperava que o relógio batesse as nove e meia da noite, a casa estivesse arrumada e o bebé a dormir. Quantas vezes lhe diziam: "Tens tempo para isso?" "Porque o fazes se não ganhas dinheiro?" "Andas a perder tempo com isso com tanta coisa que tens para fazer em casa." E ela fazia ouvidos moucos, muitas vezes com amargura porque as palavras vinham de quem mais amava. Mas as quartas à noite mantinham-se sagradas, como há já algum tempo. Porque era nesse momento em que sentia realmente plena, em que se sentia ela própria. Quando os cânticos do côro passavam para a sua voz de soprano, sentia-se realizada e em êxtase. Não precisava de ser outra senão ela própria. Não precisava de fazer outra coisa que não fosse sentir as vibrações do canto em cada uma das suas células. Sim, tinha de ter tempo para isso. Porque naquele momento ela não era a mãe, nem a esposa, nem a empregada de escritório. Ela era apenas música.
"Mais valia descansares", continuavam a dizer-lhe. E ela encolhia os ombros, não querendo responder nem encontrar conflitos. Não era muitas vezes que alguém a compreendia, e isso vinha mesmo de quem não a conhecia. De alguém a carregar um saco com parafusos, que sabia ser para alguma bricolage. Ou de alguém atarefado a tomar notas de um livro que sabia não ser de estudo de alguma matéria escolar. Sorriam entre eles, quando lhe viam as pautas debaixo do braço, e o seu dia seguia cheio, tão cheio, como em todas aquelas noites em que podia continuar a cantar.
Esta pequena narrativa foi publicada no nº 47 da revista digital Incomunidade, como podem verificar pelo link, em julho de 2016.
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